sábado, 23 de janeiro de 2010

'Cortez the killer'


Existe uma antiga querela, tão estéril quanto interessante, entre os melômanos. Divide os que dão preferência às apresentações ao vivo e aos que valorizam a audição do disco. Para mim, a questão é menos candente: pode-se dizer que foi o sucesso de Elvis Presley que inventou, ou ao menos consolidou, aquilo que hoje chamamos de industria fonográfica(será que ela ainda existe?). Logo, a própria ideia de uma música desprovida de base material me parece sem sentido. Os Beatles, afinal, continuaram os Beatles longe dos palcos.

No entanto, para os amantes da música clássica ou do jazz, herdeiros de uma tradição anterior ao rock e à industria fonográfica, a diferença essencial entre estar coletivamente na presença física da orquestra ou do combo e estar ouvindo a sua reprodução técnica no aconchego solitário do lar soa bem mais notável. A vulgarização desse momento mágico por automóveis e celulares acrescentou novas nuances ao problema do onde, do quando e do como ouvir Brahms ou Ellington.

Pois bem. Há exatos nove anos atrás, Neil young tomou partido dos que defendem o primado da musica ao vivo. Sua acachapante apresentação no Rock in Rio 3 justificou toda a expectativa dos fãs. Não preciso ter assistido aos outros para saber que foi o melhor show de toda a história do festival. Foi o melhor show da minha vida, superando até o Sonic Youth, em 2000, o Brian Wilson, em 2005, e o Radiohead no ano passado, soberbos.

E nada, nem os muitos discos ao vivo gravados por Young no decorrer da sua prolífica carreira, como "Weld", de 91, "Rust never sleeps" e "live lust", ambos de 79, ou mesmo "For way street", de 71, ainda dos tempos com Crosby, Stills & Nash, poderia ter-nos preparado para o que assistimos. Ao final das quase duas horas em que o canadense e o grupo Crazy Horse estiveram no palco com as vocalistas Astrid(irmã) e Pegi(mulher) Young, as pessoas se abraçavam, chorando de felicidade naquele descampado em Jacarepaguá.

Havia menos gente para ver Young do que para ver qualquer outra atração de fim de noite do festival, possivelmente um quarto da platéria dos Guns N'Roses ou um quinto da dos Red Hot Chili Peppers, por exemplo. Apesar de toda a sua bagagem, reconhecida até pelos punks e grunges, aquele senhor de 55 anos de idade não agradava ao grande público carioca. Seu público abarca quem, em todas as faixas etárias, está interessado na história do rock. Seu trabalho dilacerado entre o folk mais puro e a eletricidade mais cacofônica baliza tudo o que está no meio.

A prórpia frequência com que young registra seus shows em disco indica o quanto são importantes para ele mesmo e para seus fãs. Seu último registro ao vivo"Road rock - Friends & relatives" saiu na mesma época do show épico. Em comum, apenas a longa duração das versões digressivas, elétricas, cheias de microfonias. porém, até para quem já havia memorizado cada palhetada dos 18 minutos de "Cowgirl in the sand" ou os 11 minutos de "Words" o show de 2001 foi chocante.

Nunca o Brasil presenciou tamanha entrega de um artista estrangeiro. Cantando com ardor "Cinnamon girl", "Hey hey, my my" ou "Powderfinger", o cinquentão tomou a platéia como refém. O preço do resgate era uma entrega equivalente à sua, algo impossível de ser feito ou sequer concebido só com a audição de um MP3. Sua aura, sua presençã ali, diante de nossos olhos, em carne e osso, abriu um fosso entre ouvir Neil Young e assistir (a) Neil Young. Física e psicologicamente devastador.

"Like a hurricane" foi o melhor exemplo de seu método. A canção que o Roxy Music reinterpretara como um baladão podre de chique foi recuperada como... como... bem, como um furacão. Young executou-a com tal arrebatamento que uma das cordas de sua Les Paul se rompeu, ferindo-o. Mesmo sangrando, ele nem pestanejou. Pegou a corda arrebentada e começou a batê-la contra os captadores, transformando a guitarra noutro instrumento e "like a hurricane", numa melodia fantamasgórica e pungente.

Para mim, entretanto, o ponto alto foi "Cortez the killer". Com ela chorei e continuo chorando quando, como agora, escrevo escutando a versão em "Live rust". Consta que os astecas previram o fim do (seu) mundo para o equivalente ao nosso 1519, ano em que Hernán Cortez chegou ao México. Young narra esse apocalipse através de uma elipse e de solos tristíssimos de guitarra. Apresenta a civilização de Montezuma de maneira propositalmente idílica, inclusive justificando que "eles ofereciam vida em sacríficio/ Para que outras pudessem prosseguir". Insere uma estrofe lírica, falando de uma amor no passado. E afinal comenta: "Ele veio dançando através das águas/ Cortez, Cortez/ Que assassino." Ouvir isso no Rock in Rio foi uma catarse emocional, uma maneira de chorar por paixões e civilizações perdidas, pelo fim de um mundo melhor. (lembram do slogan?)

***

Aproveitando o gancho, o empresário, Roberto Medina, planeja para a primavera(e não para o verão, sábia decisão) uma nova edição do festival na cidade. Espero ver algo próximo de uma manada de cavalos loucos como em 2001.

Um comentário:

  1. Acho muito hilário que cada um de vocês fazem com esse blog. Gosto de publicações relacionadas principalmente à música (estilo rock sendo o meu favorito), pois me serve como inspiração. Parabéns!

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