quarta-feira, 29 de abril de 2009

Amor, redenção e arte


Em Desonra, J.M Coetzee apresenta um límpido domínio de narrativa. Sua prosa trilha caminhos pelas situações mais díspares. A clareza do texto enaltece o escritor da Cidade do Cabo (África do Sul) por sua precisão descritiva.


David Lurie, Professor de poesia procura não abater-se pela falta de interesse dos alunos em suas aulas. Erudito, 52 anos, passou pelo divórcio duas vezes e costuma encontrar-se com Soraya, uma prostituta bastante jovem e - ironicamente - muito moralista.


A verve passional acaba inclinando Lurie para um - digamos – ‘inquérito administrativo’. Logo, o adorador do poeta inglês William Wordsworth é obrigado a afastar-se da universidade onde leciona. Vítima do moralismo acadêmico, o intelectual exila-se na casa de sua filha na fazenda.


Refugiado, nesse período o intelectual tenta abstrair o tédio com uma série de afazeres voltados (também) para a vida campestre. O resgate por meio da arte, ocorre efetivamente quando Lurie volta à sua cidade de origem; após todo um fluxo de acontecimentos e "acúmulos psicológicos" procura realizar seu projeto sempre procrastinado: escrever uma ópera sobre Lord Byron.


Desonra demonstra os percalços e a urgência por elevação, onde uma existência foi gradativamente reduzida (a identidade de David Lurie foi posta em questão, diga-se) até o "massacre de uma alma". Em diversos sentidos, leis e armadilhas foram estabelecidas justamente contra as intensidades do erudito, que preferiu pagar com a própria degradação.



E, no entanto, não podemos viver nossas vidas cotidianas no reino das ideias puras, isolados da experiência sensorial. A questão não é: como posso manter a imaginação pura, protegida dos ataques da realidade? A questão tem de ser: é possível encontrar um jeito de fazer as duas coexistirem?


Fica a questão.

terça-feira, 28 de abril de 2009

As brasas



Nós brasileiros, vivenciamos um momento delicado. E histórico. Recentemente o nosso chanceler, Celso Amorim esteve em Teerã para ampliar os laços entre Irã e Brasil, e aproveitando a estadia, convidou o presidente Mahmoud Ahmadinejad a visitar o Brasil.

É fato que o Brasil tem interesses econômicos em relação a esta nação. Mas será que vale tudo por dinheiro? Vendem-se príncipios? Como ficam estas palavras do presidente Lula diante do revisionismo de Ahmadinejad, de suas conferências de negação ao Holocausto, concurso de charges minimizando o mesmo e até exposição de fotos sobre o assunto?

Mas quem dera os crimes cometidos pelo governo iraniano se limitassem a isso. Pois diariamente do seu púlpito, o presidente deste país faz ameaças a Israel. Ameaças de genocidio. Vale a pena ressaltar duas das mais contundentes:

No domingo, 3 de junho de 2007, em uma cerimônia comemorando o 18º. aniversário da morte do Ayatolá Khomeini, ele declarou: “A contagem regressiva para a destruição do regime sionista começou nas mãos das crianças do Hizbullah”. E acrescentou: “Se D-us quiser, em um futuro próximo nós testemunharemos a destruição desse regime, graças às realizações de todos os combatentes palestinos e libaneses”.

Ou então no dia dois de junho de 2008, conforme noticia a Folha Online: "O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, disse nesta segunda-feira que Israel irá "desaparecer em breve" e que o "poder satânico dos EUA" será destruído, em discurso em homenagem ao 19º aniversário de morte do líder revolucionário iraniano, aiatolá Ruhollah Khomeini, segundo informações da agência oficial Irna".

E o presidente iraniano não perde tempo. Mesmo com sanções internacionais (apesar de ineficazes até agora, elas existem) ele corre atrás do tempo, enriquecendo urânio, em busca da arma nuclear, para poder dispará-la contra Israel. Prova deste fato foi a notícia divulgada durante esta semana pela agência EFE (12/04) de que o Irã testou novos mísseis de longo alcance capazes de atingir Israel:

"O Irã realizou hoje testes com um novo míssil terra-terra de longo alcance desenvolvido e fabricado por especialistas das Forças Armadas iranianas, informaram hoje fontes oficiais.

O novo míssil Sejil tem um alcance de cerca de 2 mil quilômetros, usa combustível sólido combinado e conta com uma "alta velocidade de lançamento", disse o ministro da Defesa iraniano, general Mostafa Mohammad Najjar, informaram agências de notícias locais e a televisão iraniana"
.

Mais além: sabidamente o eixo Irã-Síria, é o grande financiador e apoiador dos grupos terroristas Hamas e Hizbullah que são fonte de boa parte dos conflitos na região. Se o Brasil aspira mesmo a contribuir para a paz na região, e a um assento no conselho de segurança na ONU deveria repudiar tais atos e não legitimá-los.

O Irã também é acusado formalmente pela Argentina pelo atentado à AMIA – Associação Mutual Israelita Argentina, e à Embaixada de Israel que deixou centenas de mortos e feridos.

Uma das primeiras vozes corajosas a se manifestar contra tal estado de coisas foi do deputado Federal Marcelo Itagiba (PMDB/RJ), que entre outras coisas lembrou a participação do chanceler Oswaldo Aranha, dando seu parecer e voto favorável a partilha na Assembléia da ONU em 1947, ajudando a viabilizar e criar o moderno Estado de Israel, coisa que Ahmadinejad - este que foi visitado pelo atual chanceler, Celso Amorim e será recebido de tapete vermelho em Brasília - quer destruir.

Quase inacreditavelmente - pelo menos do meu ponto de vista o Ministro Interino das Relações Exteriores, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, respondeu da seguinte maneira:

"Nós não prejulgamos os regimes políticos de outros países. Assim como queremos não que o nosso regime seja julgado. Não nos interessa saber se é um regime parlamentar, presidencial; mais ou menos democrático. Nas Relações Internacionais nós respeitamos um princípio da Constituição, que fala da autodeterminação dos povos. Então, nós o respeitamos. Podemos até ter opiniões diferentes, e não interferimos. Achamos extremamente perigoso para a estabilidade internacional quando países não seguem esse princípio, de forma mais correta".

Em outras palavras, pouco importa se um país é ditatorial ou não, se oprime sua população ou não, se viola os direitos humanos ou não. Mantemos relações comerciais com ele e vamos seguir mantendo. Justamente a autodeterminação do povo judeu em sua terra ancestral, que o Brasil apoiou é aquela que o Irã quer agora subverter!


***


Chico Buarque, da ocasião do lançamento de seu romance "Budapeste" declarara que jamais havia pisado sobre o solo da capital magiar. Talvez o nosso compositor e autor tenha se inspirado em Sándor Márai, autor húngaro, que mesmo sem ter aportado por essas bandas escrevera sobre um arraial famoso em nossas terras. Mas influenciar filho de sociólogo está longe de ser dos maiores feitos de Sándor Márai.

"As brasas" (Cia das Letras, 1999) é seu romance mais comentado, também pudera, poucas vezes me deparei com texto de fluidez análoga, talvez a incansável busca do autor pelo essencial seja o trunfo de prosa tão agradável e rica (e essa sensação ainda permanece mesmo se tratando de uma tradução da edição italiana da obra, e não diretamente do original). O romance é quase completamente constituído pelo solílóquio de Henrik, um velho general do Império Austro-Húngaro, que nos tempos de meninice, contraí uma sólida amizade com um colega de escola militar, Karol. Os dois crescem juntos, aprendem a viver juntos, mas é inegável que são feitos de matérias distintas. E em algum momento, já na maturidade, algo acontece, e os dois amigos separam-se, Karol deixa Henrik sem muitas explicações, mas deixando muitas pulgas atrás da orelha do amigo fiel(Ha!).

41 anos se passam, e Karol retorna para acertar as contas com o amigo, para dizer o essencial sobre aquele "algo" acontecido. É somente entre esses personagens que gira o romance, com algumas participações femininas, claro, mas somente a esses dois é dado o direito da ação, outros personagens só pajeam os protagonistas, ou são espectros de suas memórias. Rancor, vinçança, honra, amizade, lealdade são os motes do romance, a obstinação humana, a condição de via-crúcis e não de crucificação de nossa natureza é muito bem explorada nesse romance em que nada é supérfluo. E além de tudo que esse pequeno romance pode nos trazer, fica a adorável sensação de se ter lido um romance clássico com a fluidez e agilidade dos melhores contos calvinianos.

"Como você sabe, de bom grado sacrificamos aos deuses uma parcela da felicidade, pois eles são invejosos e, quando dão a um comum mortal o presente de um ano de felicidade, pode-se ter certeza que anotarão imediatamente esse débito para depois lhe exigir o reembolso, no final da vida, praticando taxas de agiotas."

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"I celebrate myself"


Com essa frase pequenina, Walt Whitman, dá início a sua gigantesca obra que é: "Leaves of grass". E o que não é um blog, que não uma celebração de Si mesmo? Um uníssono em primeira pessoa, sendo repetido nos blogspots, bloggers e wordpresses da vida. Não ache que aqui será diferente, não teremos outros assuntos (eu e meu comparsa) além de nós mesmos, ou de nossas experiências musicais, nossas leituras. Voltando ao Whitman, ele demonstra um lado blogueiro vivaz, inicia sua primeira edição da obra com um poema chamado "Song of myself" que define toda a verve umbiguista do proto-blogueiro que foi Whitman.


"I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belong to you.

I loafe and invite my soul,
I lean and loafe at my ease . . . . observing a spear of summer grass."


"Eu celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.

Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à vontade . . . . observando uma lâmina de grama do verão."


O que mais me impressiona na obra de Whitman, além de ele ter uma quedinha pela vadiagem e ser totalmente auto-suficiente, é sua vocação iconoclasta. Os leitores que primeiro se depararam com a edição inicial de Leaves... se perguntavam: Seria prosa? Poesia? Diziam até que que o livro não trazia o nome do autor nem na capa nem nas páginas de apresentação. A assinatura autoral só aparecia no meio do poema de abertura, já na página 28: "Walt Whitman, um grosso, um cosmo". Quem era o autor, afinal?

Um jornalista e carpinteiro nova-iorquino de 36 anos, olhos azuis, já conhecido no meio, com fama de preguiçoso, e que preferia a companhia de gente do povo a intelectuais, totalmente fora dos círculos literários da época. Alguém que, antes de 1855, havia publicado alguns editoriais contundentes, resenhas, poemas, mas nada mais consistente. Um arrimo de uma família pobre e problemática do Brooklyn, que quase não frequentou a escola, se auto-educando na universidade das ruas, praias, antros, bibliotecas públicas, teatros, óperas e jornais de Nova York.

Ainda preso a ídolos da adolescência, me custava acreditar que Leaves tivesse realmente sido um antecessor de Illuminations de Rimbaud, não que isso tire o gênio do poeta adolescente, mas deixa o leitor aqui, se perguntando: Porquoi je ne pas pense a çà avant?. Ele também foi publicado dois anos antes de Fleur du mal, o que confere a Whitman o status máximo da vanguarda poética. Além de todas as qualidades, os versos de Whitman, falam --em um exercício extremo da metalinguistica-- sobre a revolução, revolucionando.