quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Tango de los noventa minutos


"No me dejen afuera". É o que os 40 milhões de argentinos lêem na capa do tradicionalmente gaiato diário esportivo Olé, na manhã de hoje. Esses mesmos 40 milhões de corações estarão hoje as 19 horas, no horário de Buenos Aires, aglomerados diante de um aparelho televisor, que transmitirá a decisiva partida contra o Uruguai, que decidirá o futuro do futebol argentino. A partida é decisiva para a inclusão de argentinos e também uruguaios na copa da África do Sul, no ano vindouro. Independente do resultado da partida, esse foi o ano da Argentina no Thiago. Principalmente pela literatura portenha, terreno em que nós brasileiros perdemos de goleada para os vizinhos.

O melhor livro que li no ano é um clássico da literatura portenha, trata-se de "Sobre heróis e tumbas" do muito citado para vencer o nobel desse ano "Ernesto Sabato". A propriedade da condução de um romance é a marca de Sabato. Que nesse volume, cria quase que um mundo personal onde se desenrolam seus acontecimentos, sem fugir do fantastico na literatura, peculiaridade muito argentina, ele cria um tratado sobre a passionalidade dos portenhos diante da vida. Desde a simplicidade do esporte até as questões mais sensíveis como a liberdade humana. Será que um ato gratuito mostra que está livre dos grilhões da existência? Uma estória de amor de um jovem saudável e tolo por uma mulher doente e sofisticada, em todas as gamas que os adjetivos podem atingir, transforma-se em um painel da vida portenha no século XX. Sobre heróis e tumbas é o guernica pintado em azul e branco.

O último grande romance que li, também foi parido por um louco da bacia do Plata. Alan Pauls, com seu: "O passado"; agride, choca, enfia o dedo com sujeira em baixo da unha na ferida aberta. Com seus períodos longuíssimos não demonstra o mesmo talento em conduzir um romance(pelo menos não da maneira que mais me agrada), mas vence o leitor pela ousadia com que expõe as ignomínias que existe dentro de cada ser humano. O livro me ajudou a entender mais claramente que o passado deve ser enterrado sem muita reverência. Acho que saí um pouco mais duro da leitura. E acho que esse é um ponto fundamental de superioridade da literatura sobre as outras artes. O poder transformador. Uma canção pode mudar meu humor, uma pintura pode me ensimesmar, mas somente a leitura transforma. Eu não saí o mesmo dos grandes livros que li, eles auteraram algo na estrutura do meu DNA. E "O passado" teve esse poder, tornei-me uma pessoa diferente, ainda não posso dizer se para o bem ou para o mal. Não temam o passado e mergulhem de cabeça no romance de Alan Pauls. E assistam ao filme, somente depois da leitura, para dar risadas.

Já foi citado nesse espaço o sempre subestimado cancioneiro portenho, e destaco da safra 2009 dois grandes lançamentos dos hermanos. O primeiro é do grande violonista Federico Aubele, que chega com a sua peculiar elegancia ao terceiro álbum, onde marca presença mais constante nos vocais do que nos discos anteriores. "Amatoria" não é o melhor disco de Aubele, mas mostra o compositor transitando por um terreno mais próximo da música tradicional argentina, abrindo um sorriso de contentamento em Atahualpa Yupanki, onde quer que ele esteja. Destacaria também a banda, El Mató Un Policía Motorizado, que flerta com o famigerado post-rock, mas com uns toques criativos personalíssimos de seu passaporte argento. Eles lançaram três discos que formam uma espécie de trilogia sonora, altamente recomendável: Navidad de Reserva, Un Millón de Euros, e Dia de Los Mortos.

Talvez o impacto de duas tragédias em sequência, abale a auto-estima do cidadão argentino, pois podia-se notar o abalo que foi para os argentinos a perda da voz de Mercedes Sosa, que representava a resitância argentina em tempos menos tranquilos. Entretanto acho que o volume cultural que vem dos pampas cada vez se torna maior, em caso de derrota nos campos, acho que o argentino deveria pedir uma Quilmes gelada e gastar algumas horas a ler Alan Pauls em algum charmoso bar de Buenos Aires. E preciso confessar, apesar da apologia argentina, hoje visto azul celeste.

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Poucos são os programas que me fazem ligar o aparelho televisor, e as reprises do genial sitcom Seinfeld é um desses. Uma possível volta foi ensaiada em um episódio da série "Curb you enthusiasm", que é escrita e protagonizada por um dos gênios por traz de Seinfeld: Larry David. Fica a minha torcida por novas estorietas sobre o nada.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Fado de dois lustros


Tenho uma forte lembrança da infância, de quando ia à casa da minha avó materna e era entupido com quitutes e música lusitana. Sempre foram duas das minhas paixões a gastronomia e a música. Posso sentir o gostinho dos pastéis de Santa Clara só em rememorar aquelas manhãs de domingo. Apesar de ser uma criança gulosa, o clímax dessas visitas era o aparelho de som muito arcaico que minha avó conservava, e ainda conserva, como objeto de decoração por contar com raras visitas do neto melômano. O antigo aparelho, era um móvel que tomava destacada posição na bem decorada sala de estar da antiga casa da vovó, os meus ouvidos sensíves se espantavam com o barulho que aquelas caixas de mogno podiam provocar. E havia uma estratégia para alcançar um som mais grave e potente: enfiava metade do meu pequeno corpo em um orifício no centro do "móvel" e de lá ouvia os clássicos e alguma música popular brasileira e também portuguesa.

Essa nostalgia toda não é fortuita, ou gratuita, o dia 6 de outubro traz de volta um pouco do menino que entrava no buraco do aparelho de som da avó. Há dez anos exatos morria a maior intérprete de além-mar, a voz que adorava ouvir seguro, dentro daquele buraco, onde no auge da minha infância podia me proteger de toda a sorte de desventuras e infortunios que vinham a reboque daquela bela voz, além do abrigo físico havia a inocência infantil. Para a criança, era até engraçado ouvir a maneira com que ela pronunciava as palavras conhecidas de uma maneira totalmente diversa do que meus pais, irmãos e amiguinhos falavam. Não entendia a tristeza do fado, que só depois de alguns anos viria me atingir.

E foi no dia 6 de outubro de 1999 que aos 16 anos, com os ouvidos já bastante detonados pelos Heavy-metals e Hardcores que escutava naqueles tempos recebi do meu pai a notícia da morte de Amália Rodrigues, foi o dia que entendi a tristeza plácida do Fado. Foi como se uma tia que fora muito próxima na infância, mas que depois houvesse se distanciado, morresse. Lembro da maneira que "Estranha forma de vida" ecoava na minha cabeça, e lembro também que chorei pela tia. Ouvir a voz de Amália é prestar tributo a beleza de ser lusófono, e sobretudo, um deleite maior que o dos pastéis de Santa Clara.

Para passar uma impressão menos triste nesse post, deixo uma indicação da nova(velha) música portuguesa, o jovem Antonio Zambujo, que faz releituras dos "standards" do fado e algumas novas composições com uma bela voz, vale a audição.